Além de ser um agente de mudança cultural e ícone da resistência negra no Brasil, Dom Filó é um contador de histórias. Carioca de 73 anos, Asfilófio de Oliveira Filho é engenheiro civil, jornalista, DJ, produtor cultural e cine-documentarista, pós-graduado em marketing pela ESPM e com MBA em gestão esportiva pela FGV.
Nos anos 1970, ele foi um dos muitos mentores do Black Rio, movimento de contracultura que surgiu no Rio de Janeiro (e, desde 2018, é considerado oficialmente como “Patrimônio Cultural Imaterial” da cidade). Inicialmente inspirado pela revolução do funk music norte-americano, o Black Rio misturou ritmos como funk, soul, jazz e samba, teve entre seus expoentes artistas como Tim Maia, Cassiano, Sandra de Sá, Gerson King Combo, Hyldon e Tony Tornado — e teve como seu grande símbolo o álbum Maria Fumaça, da Banda Black Rio, lançado em 1977 (Dom Filó aparece na ficha técnica, como coordenador musical).
Para além da música, Dom Filó é idealizador e fundador do Instituto Cultne, organização que administra o maior acervo virtual de audiovisual de cultura negra da América Latina, que foi gravado pelo próprio Dom Filó e parceiros ao longo de quatro décadas. Desse imenso acervo surgiu o Cultne.TV, plataforma de streaming gratuita que reúne mais de 3 mil horas de conteúdo audiovisual autoral, e que é um registro e memória do Movimento Negro contemporâneo. Ele também é diretor geral do programa Cultne na TV, que é exibido na TV Alerj, da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, desde 2015.
Em 2019, Dom Filó palestrou na Universidade de Harvard, durante a Conferência de Estudos Afro-latinos e Americanos do Afro-Latin American Research Institute (ALARI). É Cidadão Honorário da Cidade de Atlanta (EUA) e Benemérito da Paz pelo Comitê Central da Paz – Iniciativa de Solidariedade a Serviços dos Direitos Humanos.
Em conversa com o Draft, Dom Filó fala sobre sua trajetória, o cenário da arte negra do país e a evolução do Cultne.TV, principal projeto do Instituto. Confira:
O acervo Cultne existe há 40 anos, mas seu envolvimento com a produção audiovisual e musical negra é ainda mais antigo. Pode contar um pouco como foi sua entrada nesse universo?
Sou da primeira geração de uma família negra que chegou à universidade. Meu avô era um escravo liberto, e ele desenvolveu uma amizade muito forte com um médico. Nessa época, não existia o médico legista, existia o médico e o prático. Meu avô era esse prático.
Ele deu nome aos filhos de origem grega, então meus tios eram Aristóteles, o outro Benjamin, e meu pai, Asfilófio. Consequentemente eu tive esse mesmo nome, Asfilófio. Meu filho é Pedro, porque não é justo na atualidade eu seguir essa tradição [risos].
Recentemente, descobri a origem desse nome por uma tia. Ela me disse que Asfilófio se deu exatamente pela união desses dois seres humanos, um branco e um negro, um ex-escravizado e um médico. Então o nome é Asfilófio, quer dizer, “as” dois, “filo” amigo, dois amigos fiéis.
Por conta da profissão, meu pai já cresceu com uma mentalidade diferente. Ele veio de Minas Gerais para o Rio de Janeiro, com toda a família, em busca de melhores condições. Sempre sob o comando das matriarcas, o que era uma tradição na minha família.
Aqui no Rio de Janeiro, ele foi mecânico da polícia, mas essa não era a praia dele. Ele tinha uma veia empreendedora muito grande, que eu herdei, e logo fez seu próprio negócio, uma concessionária.
Por conta disso, ele pôde comprar uma casa, que era simples, mas era mais do que muitos negros conseguiam na época. Ou seja, entrei para a escola tendo uma estrutura familiar, diferente de muitos que moravam na favela e tinham outras dificuldades.
Sempre estudei em escola pública, fiz o científico e migrei para a área técnica, de mecânica, como meu pai. Fiz universidade paga, pois era impossível para um negro nas minhas condições na época fazer uma pública.
Meu pai já tinha condições de pagar minha faculdade e fiz engenharia. Mas antes mesmo disso, quando eu era mais novo, meu pai já me dizia que eu teria que dividir minha juventude com o negócio da família, então sempre o ajudei.
Aos 18 anos, ganhei um carro e pude ir “para o mundo”. Você imagina: um negro naquela época, com um carro zero quilômetro, estudando na escola técnica e partindo para uma universidade…?
Nessa condição, foi possível obter…
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