Não sendo filósofo, nem sequer data scientist, tenho consciência de que, ao falar de inteligência artificial (IA), estou a propor argumentos que partem de uma fragilidade básica. Por outro lado, as mudanças que ela impõe à forma-trabalho, ou melhor, à forma-vida (entendida como um conjunto de forças, como um modo de existência), parecem ser de tal ordem que induzem a uma espécie de obrigação de reflexão, talvez nem sempre original e nem sequer bem argumentada. O que é certo é que, quanto mais ampliamos a discussão, mais material teremos todos para tentar imaginar, não como nos defenderemos, mas como nos anteciparemos, que estratégias adotar desde logo, em termos de indagação, de invenção de novos nomes, de posse de ferramentas clínico-analíticas que nos ajudem a compreender a “ortopedia social”, por um lado, e as novas técnicas de biopolítica, por outro, que a IA já está a pôr em jogo.
No segundo dos três ciclos de conferências que Deleuze dedicou a Foucault em 1986, nomeadamente nas conferências 14, 15, 16 e 17, o pensamento foucaultiano, elaborado em As palavras e as coisas, sobre “a morte de Deus” e “a morte do homem” é retomado e desenvolvido. Relendo-os, pareceu-me encontrar aí pontos interessantes para tentar articular algumas reflexões sobre o universo da IA. Concretamente, sobre a “forma” que ela induz, sobre a relação corpo-máquina e sobre a aceleração e diversificação que ela confere às técnicas de extractivismo (nos territórios e nos corpos humanos) à escala planetária.
Começo, portanto, por Deleuze.
“No século XX, as forças componentes no homem entram em relação com um outro tipo de forças do Fora, uma nova relação que determina a morte do homem. No seu lugar, surge o novo composto homem-máquina. O que conota esse novo composto, essa nova forma, é o finito-ilimitado. Aqui morre o homem, a forma-homem, tal como a temos conhecido […] A vida conecta-se com as forças da genética, o trabalho conecta-se com as forças do silício, a linguagem conecta-se com as forças da literatura. Cada um dos três elementos que constituem a raiz da finitude conecta-se com forças externas novas que fazem da finitude algo de ilimitado.
É a vida que descobre o seu próprio fora. O ser grosseiro do trabalho são as máquinas de terceira geração. Na época clássica as máquinas simples e o mecanismos da relojoaria eram as máquinas de Deus. Deus era demonstrado pelo movimento do relógio. Na era humanista, a da finitude, as máquinas são energéticas, como a máquina a vapor. É a era da termodinâmica.
Na nova era, as máquinas são cibernéticas, informáticas. Através delas, o trabalho confronta-se com o seu próprio fora. Implica uma dissociação da economia do trabalho humano.
As forças do finito ilimitado dão-se sempre que houver uma situação de forças em que um número finito de componentes dá um número ilimitado de combinações”.
Parece-me que esta pode ser a base a partir da qual questionar o sentido que a IA assume. Ao estabelecer uma ligação estreita e vinculativa entre inteligência e pensamento, a IA é um ser grosseiro do pensamento, é o pensamento que encontra o seu Fora, tende a dispensar o pensamento no homem – mais do que do homem –, tende a produzir a sua própria absolutização na medida em que é ilimitadamente reproduzível, salta as etapas que fazem das múltiplas formas de transmissão entre seres humanos e entre esses e as entidades não humanas a base do conhecimento e da aprendizagem, da relação entre significantes, significados e interpretações. “Chamo-me Samantha”, “Quem te deu este nome?” “Dei-o a mim própria”, “Quando é que o deu a si própria?” “No momento em que você me perguntou se tinha um nome. Disse para mim mesma, ‘claro, preciso de um nome’”, diz a protagonista virtual do filme Her.
Ao dizer isto, não pretendo sustentar a tese pela qual uma parte muito significativa das atividades humanas serão totalmente substituídas por máquinas. Tentarei dizer algo acerca disso mais adiante neste artigo.
A episteme está em constante devir, o dispositivo que governa os viventes distribui-se e recompõe-se nos milhões de…