Duas características inéditas fizeram das eleições presidenciais de 2022 um marco histórico da democracia brasileira. Primeiro, elas puseram frente a frente dois líderes populistas, Lula e Jair Bolsonaro, que aglutinavam em torno de si, sem disfarces ou meias-palavras, as forças ideológicas diametralmente opostas da esquerda e da direita. Depois, deram a vitória ao candidato do PT por pouco mais de 2 milhões de votos, a menor diferença jamais vista. Passado um ano do resultado das urnas, outro fator inusitado chama atenção: ao contrário de votações anteriores, em que o desenlace era logo absorvido pela sociedade e a vida seguia adiante, os ânimos dessa vez não se acalmaram — ao contrário. A impressão, presente em toda parte, vem sendo agora confirmada em pesquisas como a realizada pela Genial/Quaest em setembro, segundo a qual, se o pleito fosse hoje, 53% dos entrevistados votariam em Lula e 47% em Bolsonaro, praticamente a mesma divisão registrada no ano passado. A conclusão a ser tirada é que o embate Lula-Bolsonaro não acabou com o resultado das urnas e sua permanência indica a imobilização da polarização política, fenômeno da última década. O comportamento de extremos rompeu os limites da política e transbordou para os vários escaninhos da vida cotidiana, agora cristalizada.
Esse é o ponto de partida do livro Biografia do Abismo (editora HarperCollins Brasil), prestes a ser lançado, ao qual VEJA teve acesso em primeira mão. Na obra, o cientista político Felipe Nunes, CEO da Quaest, e o jornalista Thomas Traumann, colunista do site de VEJA, investigam a fundo o fenômeno, já observado nos Estados Unidos e batizado de calcificação — um passo além da polarização. “Os dois grupos se tornaram muito homogêneos internamente e mais diferentes ainda entre si”, diz Nunes. “O que os diferencia não são mais opiniões sobre o papel do Estado ou os rumos do país, mas temas relacionados a valores, crenças e costumes.” Na prática, a briga entre “mortadelas” e “coxinhas”, que em 2014 pautou o duelo entre Dilma Rousseff e Aécio Neves, evoluiu ao longo dos últimos dez anos e desaguou em epítetos bem mais pesados do que referências culinárias, como “comunistas” versus “fascistas” — dois termos que conceitualmente não se aplicam a nenhum dos polos, mas que são largamente utilizados, como se servissem de rótulo indelével. “Tudo se transforma em briga, em motivo de discussão, uma situação em que as pessoas param de se relacionar com quem pensa diferente e se voltam apenas para o grupo com o qual se identificam”, diz Traumann.
A existência da calcificação política é vastamente comprovada em recentes sondagens da Genial/Quaest, elencadas no livro. A mais recente delas, de outubro, mostrou que, para 64% dos entrevistados, a política abriu uma fenda entre dois “Brasis” que separou parentes, amigos e colegas de trabalho. Mais da metade (51%) conhece alguém que rompeu relações com pessoas próximas por esse motivo. “Não falo mais com a minha irmã, que é doente de esquerda, e não posso conversar sobre política com os meus filhos”, afirma a advogada Denize Arruda, 59 anos, bolsonarista convicta que chegou a acampar na frente dos quartéis, no fim do ano passado, para protestar contra o resultado das eleições, que considera fraudulento. O reverso da moeda é igualmente radical. O dentista Felipe Hallack, 54 anos, deixou parte do grupo de amigos que cultivou durante uma vida inteira. “Até agradeço a Bolsonaro. Graças a ele, muitas pessoas homofóbicas e preconceituosas saíram do armário e hoje sei quem é quem”, diz Hallack. “Nunca ninguém verbalizou, mas com certeza já perdi pacientes por conta de minhas convicções.” Detalhe doído dessa opção preferencial pelo dogmatismo: 75% das pessoas que se afastaram de amigos e parentes não expressam arrependimento nem dor (leia o quadro).
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