O velho lugar-comum de que Brasília não conhece o Brasil não se aplica à ministra da Saúde. Nísia Trindade defendeu tese de doutorado em sociologia e escreveu artigos justamente sobre aquele lugar que, até pouco tempo, chamavam de Brasil Profundo, ou sertão.
É o Brasil que começa onde o olhar de governos e da opinião pública muitas vezes termina. Um lugar que pode ser a rodoviária de Brasília, onde migrantes chegam a todo momento, as cidades do entorno da capital, os pequenos municípios de Minas e Goiás, a Caatinga, o Pantanal, uma comunidade ribeirinha da Amazônia.
Sempre foi um desafio delimitar o sertão, espaço físico ou mítico. Atualmente, sertão para alguns se resume ao semiárido nordestino, região de dramas como a seca. Historicamente era o lugar inóspito, distante dos centros das cidades. Com o tempo, firmou-se a ideia que o sertão não era necessariamente um espaço geográfico, mas talvez uma condição, uma realidade brasileira, um recorte social ou de poder.
Em sua tese que virou o livro “Um sertão chamado Brasil: intelectuais, sertanejos e imaginação social”, Nísia Trindade diagnostica visões sobre o interior do País por parte de personalidades históricas que acabaram influenciando o olhar do poder político e da academia.
Uma dessas personalidades é o escritor Euclides da Cunha, autor de Os sertões, um livro que desafia o tempo e, mesmo com conceitos ultrapassados de geografia e antropologia e preconceitos de época, permanece como o clássico nacional por excelência. É uma obra de ambiguidades intensas, que, de forma genial, cravou que “o sertanejo é antes de tudo um forte”, frase sublime que pôs abaixo teorias estapafúrdias de raça, que inclusive ganharam espaço no livro. É a imagem de Hércules-Quasímodo, da obra do francês Victor Hugo, analisa Nísia, de “aspecto dominador de um titã acobreado e potente”, um “desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias”.
No artigo “Missões civilizatórias da República e interpretação do Brasil”, derivado da tese, Nísia relata que, em certo momento da vida, Euclides considerou que o sertão, como uma metáfora da barbárie, podia ser inclusive a Rua do Ouvidor, reduto das elites cultural e política do Rio, capital da República, no começo do século 20. Ela descreve que a obra do escritor apresenta o dualismo sertão-litoral em duas faces. “Numa delas, o polo negativo é representado pelo sertão, identificado com a resistência ao moderno e à civilização. Na outra, o sinal se inverte: o litoral é apresentado como sinônimo de inautenticidade, enquanto antítese da nação.”
A tese foi defendida há 26 anos. De lá para cá, Nísia viveu experiências acadêmicas fascinantes, entre elas o comando da Fundação Oswaldo Cruz, a Fiocruz, sendo sua primeira presidente. Chefiou a instituição no tempo da pandemia e da política contra a ciência e a saúde pública de Jair Bolsonaro.
Agora, em Brasília, a ministra do governo Lula pode sentir, por dentro, que o sertão da violência costuma se apresentar como poder político. A cobiça do Centrão pela pasta da Saúde mostra a barbárie do ambiente em que vale a lei do mais forte e do mais esperto, em que a ciência deixa de ter importância diante da fúria do patrimonialismo e do interesse político.
Outra figura que a doutora pesquisou foi o Marechal Cândido Mariano Rondon, aquele descendente de bororos que chefiou expedições pelo interior para instalar linhas de telégrafos. Ao final da empreitada, a tecnologia estava defasada. Mas, num caso de reinvenção de imagem pública, ele já tinha se tornado conhecido pela relação com as comunidades indígenas e pela criação do SPI, o primeiro órgão indigenista do País.
Por muito tempo, os militares estiveram associados à causa indígena. O sertanismo tem raízes na caserna. É coisa de pouco tempo o mergulho da oficialidade brasileira em teorias conspiratórias na Amazônia e na política anti-indígena. Aqui uma reportagem de Vinícius Valfré sobre essa mudança de rota:
Leia matéria de Vinícius Valfré
Muito se critica Rondon pela visão do Estado em relação aos indígenas moldada por ele. A sua conduta dura com subordinados chega a ser analisada por Nísia. O sertanista deu início a uma política de miscigenação e de…
Read More: Nísia Trindade enfrenta os desafios do Sertão e as demandas do Centrão