Em seu artigo 9º, o Marco Civil da Internet introduz o princípio da neutralidade de rede, que prevê o tratamento isonômico dos pacotes de dados que trafegam online, e estabelece que, na hipótese excepcional de discriminação ou de degradação de tráfego, o responsável pela transmissão, comutação ou roteamento deverá “oferecer serviços em condições comerciais não discriminatórias e abster-se de praticar condutas anticoncorrenciais”. Trata-se de uma regra cujo objetivo é promover a igualdade e a concorrência, com foco na livre iniciativa e na defesa do consumidor, em resposta às crenças de que os operadores das infraestruturas físicas constituíam a grande ameaça nos mercados de provedores de serviços e, portanto, poderiam alavancar verticalmente seu poder de mercado por meio da diferenciação da qualidade de sinal ou dos fluxos de dados por provedor ou por tipo de conteúdo.
Até 2014, ano em que o texto foi promulgado, as preocupações com condutas discriminatórias no setor de telecomunicações, muitas vezes acompanhadas de medidas contra empresas com poder de mercado significativo, apareceram tanto na atuação da Anatel quanto na atuação do CADE. Um exemplo disso é a inclusão expressa, pela primeira vez, do conceito de poder de mercado significativo no provimento de infraestrutura de telecomunicações, por meio da Resolução nº 402/2005, atualizada e substituída em 2012 pela Resolução nº 590, e da Resolução nº 426/2005.
No mesmo sentido, o CADE, no Ato de Concentração n. 08012.005789/2008-23 já reconheceu o acesso às redes (ou seja, a posição das operadoras de telecomunicações) como barreira para o mercado de acesso à internet e o papel da regulação setorial na prevenção de condutas discriminatórias por meio de previsões específicas[1]. Já no caso da cisão da Telco (Telefônica, Assicurazioni Generali e Intesa Sanpaolo) e da aquisição da GVT pela Telefônica Brasil, destacou-se que o acesso à rede local legada da Telefônica constituía uma barreira para os mercados de STFC e SCM, pois as características de essential facility desta infraestrutura constituiriam incentivos à discriminação e à recusa de acesso[2]. Esses casos, ainda anteriores à introdução do princípio da neutralidade de rede pelo Marco Civil, já demonstram as preocupações existentes à época quanto às potenciais condutas discriminatórias por parte dos ISPs, que poderiam resultar em abuso de poder de mercado para ganhos em mercados downstream.
Ocorre que tais preocupações não mais subsistem. No cenário da nova economia digital, a diminuição da importância do controle dos ativos físicos como fator competitivo e a centralidade do controle de dados como fator impulsionador de vantagens competitivas levaram a um deslocamento do poder de mercado, antes concentrado nos detentores da infraestrutura física, às grandes plataformas digitais. Nesse sentido, basta observar as mudanças nos rankings de maiores empresas do mercado ao longo das últimas décadas[3].
Conforme estudo publicado em 2022, no início dos anos 2000, a lista, baseada em valor de capitalização de mercado, era composta por diversas empresas de telecomunicações e fabricantes de equipamentos de telefonia (NTT Docomo, Cisco, Nippon Telegraph, Nokia e Deutsche Telekom) e apenas uma empresa de tecnologia (Microsoft). Na década seguinte, o cenário começa a se alterar, com queda relativa das telecoms e crescimento dos grupos do setor de óleo e gás e dos bancos. Por fim, em 2022, as big techs compõem quatro das cinco maiores empresas do mundo (Apple, Alphabet, Microsoft e Amazon). Somadas à Meta, essas empresas, já em 2017, possuíam uma avaliação combinada de mais de 3 trilhões de dólares, correspondendo a mais de 40% do valor total do índice Nasdaq 100[4].
Atualmente, das dez maiores empresas do mundo em capitalização de mercado, sete estão ligadas ao setor de tecnologia[5] (com inclusão Tesla e NVIDIA nesse rol), a saber[6]: 1º) Apple (USD 2,3 tri), 2º) Microsoft (USD 2,5 tri), 4º) Alphabet (USD 1,7 tri), 5º) Amazon (USD 1,5 tri), 6º) NVIDIA (USD 1,1 tri), 7º) Tesla (USD 873 bi), e 9º) Meta Platforms (USD 797 bi), e apenas três estão relacionadas a outros setores: Saudi Aramco – petróleo e gás, em 3º lugar, com capitalização de USD 2,2 tri; Berkshire Hathaway – holding, em 8º lugar, com capitalização de USD…
Read More: A neutralidade de rede e as novas dinâmicas concorrenciais dos mercados digitais