*Artigo de abertura da 1ª edição do Anuário da Justiça Direito Empresarial. A versão online é gratuita (clique aqui para ler) e a versão impressa está à venda na Livraria ConJur (clique aqui para comprar).
O momento era de transformação no Brasil, sobretudo na área econômica e jurídica. Com o advento da Lei 13.874, de 20 de setembro de 2019, que trouxe a Declaração de Direitos da Liberdade Econômica, houve valorização do empreendedorismo, do liberalismo, com afirmação dos direitos da liberdade econômica. O diploma legal trazia uma lufada de boas expectativas sobre a atividade empresarial em nosso país. No entanto, em pouco tempo veio a tragédia da pandemia, que afetou a economia do planeta.
Várias medidas econômicas e regulatórias foram adotadas, que amorteceram os impactos da covid-19 nas empresas. Além disso, a crise sistêmica e generalizada acabou sensibilizando de maneira mais intensa credores e devedores. Na medida em que todos absorveram a gravidade da situação e perceberam nitidamente os seus efeitos, em maior ou menor grau, aumentou-se a disposição para o encontro de uma solução negociada.
Paralelamente, algumas reformas legislativas contribuíram de forma decisiva para a contenção das demandas decorrentes da insolvência empresarial.
Destaca-se a reforma da Lei de Recuperação de Empresas e Falências pela Lei 14.112/2020, em vigor desde janeiro de 2021. Esse novo diploma promoveu importantes estímulos à solução extrajudicial de conflitos, a fim de evitar o ajuizamento de falências ou recuperações judiciais, mediante a criação do sistema de pré-insolvência empresarial com forte estímulo à mediação e à conciliação preventivas. A Lei Complementar 182/2021 (marco legal das startups), a Lei 14.181/21 (superendividamento) e a Lei 14.195/21 (melhoria do ambiente de negócios) também deram ensejo a um microssistema legal hábil para a contenção do problema.
Com efeito, a partir da Lei 14.112, de 24 de dezembro de 2020, foram realizadas alterações acerca das recuperações e falências. Desde a edição da Lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, inúmeros avanços foram observados no sistema de insolvência no Brasil¹.
Não custa lembrar que o Brasil já vinha com posição não muito boa nos marcadores que avaliam o Doing Business, o ambiente de negócios. O país não ostentava boa colocação, muito embora ambicionasse o ingresso na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O Brasil está entre as dez maiores economias entre as nações², por isso que, diante de sua pujança econômica, pelo número de habitantes, pelas riquezas naturais aqui concentradas, a posição ocupada é de muito relevo.
O Fórum Nacional de Juízes de Competência Empresarial (Fonajem), a Universidade Federal Fluminense e a Universidade do Estado do Rio de Janeiro, com o apoio do Instituto Recupera Brasil (IRB), sob a coordenação da professora Maria Tereza Sadek, elaboraram pesquisa³ muito interessante com o intuito de avaliar métricas de qualidade e efetividade da Justiça brasileira, focando no tempo e no custo da recuperação do crédito, identificando-se os gargalos para que se possa melhorar a posição desses indicadores no cenário de avaliação e de recuperação de crédito no mundo.
Por mais paradoxal que seja, houve no Brasil, logo no início da pandemia, decréscimo de recuperações judiciais em 2020, uma diminuição em torno de 15% quando comparado com o ano de 2019. Também os requerimentos de falência caíram mais de 30% em comparação com 2019. O mês de setembro de 2020 encerrou com mais de 62 milhões de inadimplentes no Brasil. Apesar disso, era o menor contingente desde março de 2019. Efetivamente, foi uma surpresa e certamente as empresas aguardavam ansiosamente a edição da nova lei.
Em relação às falências requeridas e decretadas, quando se faz comparação com outros países, os dados são muito mais difíceis, porque há diferenças entre legislações. Tomando por base falências decretadas, por exemplo, na Alemanha, o percentual de queda foi de 13%; o Reino Unido diminuiu 45%; os Estados Unidos, 24%; aqui, no Brasil, a queda foi em torno de 30%. Comparando todos os países do G-20, sem nenhuma exceção, todos tiveram redução na taxa de falências decretadas.
Assim, por ocasião da atualização do sistema de insolvência no Brasil, discutiu-se muito se haveria necessidade de lei transitória para tratar da recuperação de crédito durante e após a pandemia. Contudo, concentrou-se esse aspecto também na Lei 14.112/2020.
Vale destacar que a atuação do Judiciário é uma das mais complexas dentro do processo judicial de recuperação ou falência, porque são múltiplos os interesses em conflito. Quando ocorre uma demanda individual, uma execução individual, trata-se de um credor contra um devedor.
Por outro lado, compor interesses multifacetados, do ponto de vista legislativo, é muito difícil, assim como ocorre em relação à atuação do juiz e de todos os operadores do Direito. O juiz tem de olhar para a floresta, e não somente para uma árvore.
Houve, de início, a discussão acerca da necessidade de uma nova lei. Provou-se absolutamente necessária a atualização do sistema de insolvência.
Na mesma linha, sobreveio a orientação contida nas Recomendações 22 e 56, ambas do Conselho Nacional de Justiça, no sentido da criação de juízos e câmaras especializadas, bem como de Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc’s) empresariais especializados na área de recuperação e falência. Para avançar, é necessário existir este tripé de funcionamento: (i) formação adequada, preparo dos juízes e dos operadores; (ii) criação dos juízos e das câmaras especializadas ou implementação delas e dos Cejusc’s empresariais; (iii) imprescindível formação da jurisprudência.
Logo, esse instrumento é primordial, com várias passagens nas quais a lei se refere a juízos especializados. Havia debate no projeto inicial sobre a previsão, na lei de recuperação, desses juízos e câmaras especializadas. Acabou prevalecendo a ideia de não tratar disso na lei. Cuida-se de matéria de organização judiciária, mas deve ter-se em vista que é ponto indispensável para aprimoramento do sistema.
Por outro lado, houve impacto fiscal positivo pela nova lei, além de consenso majoritário entre os diversos segmentos que atuam no setor. Existem precedentes consolidados pelo Superior Tribunal de Justiça e que foram incorporados pela nova lei, a qual também manteve a principiologia da Lei 11.101/05.
Outrossim, o CNJ, por meio do Grupo de Trabalho em Recuperações Empresariais, expediu diversas recomendações, orientando os magistrados brasileiros a adoção de boas práticas na condução de processos durante a pandemia, a fim de evitar agravamento da litigiosidade nesse período de crise aguda, obtendo-se excelente retorno dessas medidas. Ademais, o Judiciário dos principais Estados já conta com varas e câmaras julgadoras especializadas nessa matéria e puderam atuar com bastante sensibilidade e expertise4.
Do ponto de vista principiológico, há a preservação da empresa, dos empregos, dos tributos, da atividade econômica; o incremento da mediação no âmbito da recuperação e da falência, incluindo os aspectos tributários; o fomento ao crédito para as empresas em recuperação; o incentivo à aplicação produtiva dos recursos; a venda rápida dos ativos para pagamento das dívidas, preservando e até blindando os adquirentes em determinadas situações, permitindo a liquidação célere das empresas inviáveis com vista à realocação de recursos, estimulando o empreendedorismo e permitindo o retorno do falido à atividade econômica.
Existe um capítulo inteiro dedicado à recuperação transnacional, baseado na Lei-modelo da Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional (Uncitral), em sintonia com o mundo todo. Com isso, evidentemente, um dos princípios fundamentais que se persegue é a melhoria institucional e do ambiente de negócios no país.
A lei também regulou sobre o prazo do stay period. Agora se fixaram os 180 dias, prorrogáveis por mais 180, com a possibilidade de apresentar plano dos credores se não houver o plano principal. É grande avanço.
Igualmente, há a verificação prévia, permitindo-se que tenha curso a recuperação viável. A que não é viável toma tempo e custa para o Judiciário e não vai para a frente.
Resolveu-se de vez o problema da Fazenda Pública. Espera-se a construção de jurisprudência estável em torno desse assunto, pois havia permanente conflito entre uma das maiores dificuldades referentes à insolvência, o débito tributário e o interesse da Fazenda Pública, que é legítimo. Discutia-se desde a competência no âmbito do STJ – se era da Primeira ou da Segunda Seção – até o problema do conflito entre a atuação da Fazenda, o recebimento do seu crédito e a submissão da questão tributária ao sistema novo de insolvência. A fórmula da lei encontrou ponto de equilíbrio.
No que diz respeito ao acesso dos produtores rurais5, bem como do micro e do pequeno empresário, à recuperação judicial, a definição das regras do jogo trouxe segurança jurídica para a nova lei.
A sucessão do passivo em caso de alienação e garantias de terceiro também. Quando se trata do financiamento…
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