Em um importante ensaio denominado “As ideias fora de lugar”, o crítico literário Roberto Schwarz argumenta que, para pensar o Brasil, é preciso entender como, aqui, o liberalismo é uma ideologia de segundo grau. Se, nos países centrais, o liberalismo é considerado uma ideologia por ser um discurso parcialmente verdadeiro, Schwarz aponta que, em solo nacional, a ideologia liberal não alcança uma verdade sequer parcial, posto que descarrila por completo. Pensemos, por exemplo, na Constituição de 1891, que citava conceitos como livre indivíduo e igualdade, independente se completamente indefensáveis no contexto escravista da época.
Essa bizarra peculiaridade da cultura brasileira foi excelentemente retratada por Machado de Assis, considerado pelo crítico como “um mestre na periferia do capitalismo”. Segundo Schwarz, Machado trabalha o assunto expondo suas principais implicações: a formação de uma classe média alta e elite amalucada (até mesmo literalmente, como é o caso em O alienista), que vive como se estivesse na Europa ao invés do Brasil.
Dentre as diversas produções de Machado, “Memórias Póstumas de Brás Cubas” foi a obra principal à qual Schwarz recorre para fazer a sua análise. Brás Cubas, um jovem rico que cresce no Brasil maltratando escravos, que se envolve com uma prostituta, entre outras situações, opta por estudar direito na Europa quando sente a necessidade de se formar intelectual e socialmente. Na opinião de Schwarz, Brás Cubas é um retrato paradigmático da elite nacional, que absorve diretamente a cultura e a educação europeias, ainda que se beneficiando da violenta realidade escravista brasileira.
As contribuições de Schwarz
Dando sequência aos insights de Machado, Schwarz, por sua vez, propôs abordar duas questões fundamentais. A primeira delas é porque nossa interação é conduzida por uma semântica claramente desalinhada com a realidade local. Na opinião do crítico, o “amalucamento” de nossas elites é um reflexo direto de uma colonização que ocorre também no campo ideológico: característica da formação brasileira é a incorporação e uso descontextualizado de ideias provenientes de fora.
A segunda questão é: se é evidente que estamos operando com ideias fora de nosso contexto, por que a comédia não se apresenta como tal? Em resposta a essa pergunta, destaca Schwarz que, se, por um lado, as ideias permanecem desconectadas de suas origens, por outro, o modo como são deslocadas é moldado pelos interesses das estruturas de poder locais, que, por sua vez, precisa ser ocultado para a manutenção do status quo.
No Brasil “a comédia é outra”
Mais especificamente, Schwarz argumenta que a comédia brasileira surge quando, à elite nacional, interessa esconder o fato de que ideias descontextualizadas estão, na verdade, sendo reorganizadas para servir à manutenção de seus privilégios. Ou seja, importante característica da sociedade brasileira, segundo o crítico literário, é que a perpetuação dos privilégios da elite exige que se acoberte a forma sistêmica na qual ideias são ajustadas para atender ao seu interesse.
Inclusive, observa Schwarz que isto deve ser escondido também daqueles diretamente beneficiados, elites. O que, por sua vez, dá o fundamento da nossa particular “comédia ideológica”. Pondo de maneira simples, é como se as classes altas brasileiras, ao serem confrontadas a ponderar as injustiças que sustentam os seus privilégios, seguissem a lógica do “se fazer de sonsas”. Ou, mais precisamente, e pensando a partir da complexidade que pressupõe o conceito de ideologia, segundo o qual subjetividades incorporam as relações de poder histórica e socialmente determinadas, “sejam honestamente sonsas”.
Notem como, nesse enquadramento, o liberalismo descontextualizado cai como uma luva: não só esconde uma realidade de privilégios como permite ao topo da pirâmide social interpretar as “suas conquistas” (ou seja, seus privilégios) de maneira heroica, “é mérito próprio”. A implicação última, entretanto, é que os fatos passam a estar subjugados à necessidade política da teoria de ocultar a realidade injusta e desigual. Fruto direto desse enredo, o liberalismo nasce, no Brasil, mais capataz do que empírico. Instaura-se, assim, a comédia ideológica brasileira.
Uma teoria que passa por dois deslocamentos
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