“Meu movimento de luta, aquilo que busco destruir e incendiar pela visão de uma paisagem apocalíptica e sem remissão é Minas Gerais. Meu inimigo é Minas Gerais. O punhal que levanto, com a aprovação ou não de quem quer que seja, é contra Minas Gerais.” Era 25 de novembro de 1960 quando, nas páginas do Jornal do Brasil, o escritor Lúcio Cardoso (1912-1968) vociferava contra seu estado natal, em depoimento concedido ao jornalista e crítico literário Fausto Cunha a respeito do Diário I (Editora Elos), que acabava de lançar.
Àquela altura, Cardoso era já o autor de Crônica da casa assassinada (Livraria José Olympio Editora, 1959), romance que atraiu grande atenção da crítica na época do lançamento. A história narra a derrocada da tradicional família Meneses em Vila Velha, localidade inventada da Zona da Mata mineira. Possivelmente motivado pelo sucesso do livro no meio literário, Cardoso animou-se em fazer algo que havia muito sonhava: reuniu os escritos íntimos datados de 1949 a 1951 em Diário I, anunciando que consistiam apenas no primeiro volume de uma série de cinco. O projeto, entretanto, nunca foi concluído. Cardoso teve um acidente vascular cerebral (AVC), em 7 de dezembro de 1962, que paralisou seu lado direito e atingiu gravemente sua fala. Depois disso, desenvolveu uma carreira de pintor, usando a mão esquerda; a escrita se limitou a esboços e fragmentos.
Agora, contudo, chega às livrarias a versão mais próxima do que ele imaginou. Com ares de edição definitiva desde o título, Todos os diários (Companhia das Letras) reúne a maior parte da prosa de não ficção do escritor. A organização é de Ésio Macedo Ribeiro, que desenvolveu na Universidade de São Paulo (USP) pesquisas de mestrado e doutorado sobre a poesia do escritor. A dissertação (2001) foi um dos primeiros estudos acadêmicos a tratar dos versos do autor mineiro. Em 2006, o trabalho saiu em livro, em coedição da Edusp e da Nankin Editorial. Nesse mesmo ano, Ribeiro defendeu sua tese, publicada em 2011 pela Edusp, com o título Poesia completa.
Pesquisador independente, Ribeiro vem se dedicando ao longo das quatro últimas décadas à obra de Cardoso. Ele já havia feito uma primeira tentativa de cumprir os desígnios do escritor quanto aos diários, em 2012. Naquela ocasião, porém, admite que “ficaram algumas falhas”. Ele aponta, por exemplo, problemas no índice remissivo, nas notas e algumas lacunas decorrentes da dificuldade de localizar certos textos jornalísticos. Para estar pronta para o centenário de nascimento do autor, a publicação encomendada pela editora Civilização Brasileira “foi feita muito às pressas”, diz. O que não impediu que fosse um sucesso, esgotando-se a primeira edição em quatro dias.
Composto de dois volumes, Todos os diários engloba não apenas o “Diário I”, que o escritor publicou em vida, e o “Diário II” – ambos reunidos em Diário completo, lançado postumamente em 1970, pela editora José Olympio. A organização de Ribeiro inclui também escritos pessoais anteriores. Batizados na compilação de “Diário 0”, esses registros de 1942 a 1947 mostram um Cardoso leitor de Dostoiévski (1821-1881) e da Bíblia, da qual analisa e comenta trechos. Integram ainda a obra os textos de “Diário não íntimo”, coluna que manteve no jornal A Noite de 30 de agosto de 1956 a 14 de fevereiro de 1957. As lacunas que Ribeiro lamentou deixar em 2012 dizem respeito a essa seção. Naquela ocasião, o pesquisador teve acesso a uma coleção completa da coluna logo após o livro ter sido finalizado. Por fim, a coletânea abarca textos dispersos, que haviam sido publicados em outros periódicos.
Mais do que uma versão ampliada, os dois volumes buscam corrigir uma sucessão de erros e imprecisões que nublaram por décadas os estudos cardosianos. Cássia dos Santos, docente da Faculdade de Letras da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), foi quem levantou o alerta. Na pesquisa de mestrado, realizada na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), ela se debruçou sobre a recepção crítica de romances e novelas do escritor mineiro anteriores a Crônica da casa assassinada: de Maleita (Schmidt Editor, 1934), seu livro de estreia, a O enfeitiçado (Livraria José Olympio Editora, 1954). A dissertação foi defendida em 1997 e publicada com o título…
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