O latido incessante dos cães entre as grades dos portões anuncia a passagem do piauiense Elias Pereira, de 53 anos, que puxa sua carroça pelas ruas de Guarulhos, na Grande São Paulo.
Todos os dias, o catador de material reciclável percorre 20 km de bicicleta, para ir e voltar de casa, e pelo menos mais 20 km puxando o carrinho artesanal que, sozinho, pesa 110 kg.
Enquanto alguns setores do país comemoram a queda do dólar, o que diminui o valor das viagens internacionais e da importação de produtos, Elias viu a renda familiar dele cair drasticamente.
Por conta principalmente da valorização do real frente à moeda americana, cada quilo de papel que ele vendia por R$ 1 em 2021, hoje vale R$ 0,15. A latinha caiu de R$ 8,50 para R$ 5 e hoje ele relata que está desesperado para alimentar “as oito bocas que eu tenho dentro de casa”.
“Se fosse naquela época (há dois anos), eu teria ganhado R$ 30 com a quantidade que eu trouxe, mas hoje fiz R$ 5”, afirma ele à reportagem logo após entregar o que arrecadou na primeira jornada do dia.
Hoje, Elias precisa transportar 8,8 toneladas de papel para arrecadar o equivalente ao valor de um salário mínimo: R$ 1.320.
Em março de 2021, o dólar chegou a R$ 5,75. Em julho deste ano, a moeda americana era cotada a R$ 4,75 — 17% mais barato.
A BBC News Brasil acompanhou parte da rotina diária do catador em busca de reciclagem. A reportagem também ouviu especialistas do setor, uma economista e outros catadores para entender por que isso acontece e se há caminhos possíveis para proteger os trabalhadores do segmento.
Economista e professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Carla Beni afirma que a oscilação do preço do material reciclado ocorre porque a celulose e o alumínio são commodities negociadas no mercado financeiro mundial — ou seja, o preço flutua de acordo com fatores que vão muito além da economia local gerada pela reciclagem.
A consequência desse impacto é que, assim como Elias, muitos catadores pensam em abandonar a profissão. A estimativa do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) é de que o Brasil tenha cerca de 1 milhão de catadores.
Segundo o órgão, esses trabalhadores são responsáveis pela maior parte da coleta do país, mas 75% do lucro com esse trabalho fica com as indústrias.
6 km + 3 horas + 46 kg = R$ 30
Às 8h, Elias inicia a pedalada no bairro do Cabuçu, que lhe rendeu o apelido pelo qual ele é conhecido na região. Cerca de 10 km e uma hora depois, o “Neguinho do Cabuçu” chega ao ferro-velho no bairro Santa Emília, em Guarulhos, para pegar a carroça e iniciar sua jornada.
A reportagem o acompanhou por três horas caminhando pelas ruas da cidade, com termômetro registrando 31 graus num dia de setembro. Depois de 6 km percorridos, o resultado: 26 kg de papelão, 5 kg de ferro, 2,2 kg de alumínio e 13 kg de plástico.
“Dia de sorte”, diz ele ao olhar o carrinho cheio.
É hora então de voltar ao ferro-velho e pesar tudo. Após o veredito da balança, o pagamento: R$ 30 reais, em três notas de 10.
Elias é um homem sorridente, de 1,60 m e músculos talhados pelo trabalho duro, mas neste momento é o desânimo que aparece no olhar.
Ele não esconde a decepção de ter sua mão-de-obra trocada por uma quantia que mal pagaria o seu almoço, caso ele não tivesse a opção de comer em uma unidade do Bom Prato, a R$ 1. Mas, dentro de casa, ele não tem refeições subsidiadas e confessa que precisa fazer escolhas diárias para garantir a alimentação da família.
“Eu deixei de comprar carne (de boi). Um quilo é R$ 35. Eu compro mais uma bistequinha, um frango, uma salsicha. O feijão aumentou, o arroz aumentou. Você vai no mercado com R$ 80 e não traz quase nada”, lamenta.
“Ontem, eu comprei R$ 30 de asa de frango e parece que veio só as peles. Eu olhei e pensei: ‘veio só isso?'”
Do outro lado da balança no ferro-velho de Guarulhos está Mauriceia Maria de Lima Santos, de 54 anos. Dona do negócio e filha de catador, ela analisa o momento do setor.
Santos afirma que a reciclagem viveu um de seus melhores momentos no ano de 2021, mas que, desde meados de 2022, viu a maioria dos catadores que vendiam para ela abandonar a profissão.
“A gente está vivendo uma crise na reciclagem. Quando acontece essa queda brusca (do dólar), essas pessoas vivem em situação de miséria. Elas vivem de doação porque o que eles trazem de reciclagem não dá para comprar pão “, afirma a dona do ferro-velho.
Ela diz que prefere, algumas vezes, diminuir a margem de lucro dela para melhorar a renda dos catadores.
“Às vezes, o nosso comprador abaixa o preço e a gente segura, como acontece agora com o papelão. Hoje, eu pago R$ 0,15 quando a maioria paga R$ 0,10. Eu acho injusto a pessoa carregar 100 kg e ganhar R$ 10. Para muita gente pode não parecer muito, mas para o catador R$ 5 faz a diferença”, conta ela.
Ela disse ter percebido uma queda entre 40% e 50% na quantidade de reciclagem que recebe dos catadores.
“Eu entregava uma média de 5 toneladas de sucata por semana. Hoje, eu levo 10 dias para entregar essa mesma quantidade. Meus custos aumentaram, meus impostos aumentaram, mas meu ganho caiu. O que eu preciso fazer? Trabalhar mais.”
Por que o papelão está mais barato?
A economista Carla Beni afirma que o papelão foi o produto mais afetado pela queda do dólar nos últimos meses.
“Nós tivemos uma queda de preço para ele em torno de 70%. O câmbio em 2022 estava R$ 5,40, R$ 5,50. Hoje, nós estamos com câmbio abaixo de R$ 5. Tivemos períodos recentes a R$ 4,74. Então, quando você tem essa diferença de câmbio, a importação fica mais barata”, explica.
Ela diz que os catadores são prejudicados com a queda do dólar porque a latinha de alumínio, o aço, o papel, vidro, plástico, garrafa PET e embalagens do tipo longa vida são commodities negociadas nas bolsas de mercadorias em dólar.
Segundo a professora, não existe um dado nacional dos preços pagos aos catadores de materiais recicláveis, mas números do Compromisso Empresarial para Reciclagem (Cempre), uma associação de empresários dedicada à promoção da reciclagem, apontam que a variação do custo das mercadorias acompanha a do dólar.
“Quanto mais apreciado estiver o real, o que é muito bom para vários segmentos da economia, pior é para a vida do catador. Ele vai precisar andar mais e recolher mais”, afirma ela.
A reportagem ouviu de integrantes do setor que diversas empresas preferem importar, por exemplo, plástico reciclado da China ou bobinas de papel branco quando o real está mais valorizado. O motivo é que os produtos importados têm melhor qualidade.
“Qual é a concorrência imediata do papelão? O papel branco puro. Então, o papel reciclado tem um preço menor do que o papel branco só que, além de tudo, ele ainda tem todo um processo químico de elementos, tem que triturar e ele acaba tendo um rendimento menor. Então, na comparação, quando fica mais barato importar, acaba se preferindo comprar o papel puro branco”, diz a professora da FGV.
Para a economista, porém, é injusto que os catadores de recicláveis não sejam recompensados pelo trabalho social que fazem recolhendo materiais recicláveis.
“Quando você precifica esses materiais como uma commodity, você está fazendo comparações diferentes. Esse catador recolhe uma a uma as latinhas que são jogadas no lixo e eu dou ao trabalho dele o mesmo preço do alumínio produzido na indústria. Não é possível que você ande um mês inteiro recolhendo as sobras da sociedade e não receba um salário mínimo”, diz.
Dudu Catador, líder nacional do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis e membro da Rede Latino-Americana e Caribenha de Catadores (Red Lacre), defende que…
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