O cidadão comete uma infração de trânsito por ultrapassar a velocidade permitida na via em que trafega. Flagrado por radares, em poucos dias, recebe uma notificação do valor da multa prevista pela Administração Pública. Na própria notificação, o órgão de fiscalização informa o prazo para o recurso administrativo e enuncia: se o cidadão aderir ao sistema eletrônico de notificação, e optar por não apresentar defesa prévia nem recurso, reconhecendo o cometimento da infração, a multa devida será reduzida em 40% do seu valor, desde que quitada até o vencimento do prazo de pagamento (artigo 284, § 1º, da Lei 9503/1997, com redação da Lei 14.440/2022). A hipótese figura um negócio processual administrativo típico, extintivo do processo administrativo instaurado.
Negócios processuais são fatos jurídicos, decorrentes de declaração de vontade de ao menos uma das partes da relação processual, aptos a produzirem efeitos de criação, modificação ou extinção de situação jurídica processual, eventualmente com reflexos na organização e no curso do procedimento ou na estabilização de situação jurídica de direito material. Podem ser produzidos após instaurado o processo ou antes de sua deflagração (v.g. pactos de eleição de foro ou convenção de arbitragem).
Com precedência, Fredie Didier sublinhou a natureza de fonte normativa dos negócios processuais, conceituando-os como “o fato jurídico voluntário, em cujo suporte fático se confere ao sujeito o poder de regular, dentro dos limites fixados no próprio ordenamento jurídico, certas situações jurídicas processuais ou alterar o procedimento”. [1]
E acentuou o papel dos negócios processuais no “modelo cooperativo de processo” (artigo 6º, CPC), em especial diante da cláusula de preferência entabulada nos §§2º e 3º do artigo 3º do CPC: “§2º. O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos”, e §3º. “A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial”.
No âmbito administrativo, há negócios processuais que exigem pactuação complexa, ou individualizada, a exemplo do “compromisso de ajustamento de conduta”, previsto na Lei da Ação Civil Pública (Lei 7347/1985, artigo 5º, §6º) ou o “compromisso de cessação de prática”, enunciado na Lei de Defesa da Concorrência (Lei 12.529/2011, artigo 85), ou o compromisso de ajustamento de conduta ambiental, disciplinado pela Lei de Infrações Ambientais (Lei 9.605/1998, artigo 79-A). Nesses casos, delimita-se um peculiar e específico conjunto de obrigações em acordo extrajudicial, salvo se o ajuste for celebrado no bojo de uma ação judicial instaurada.
Porém, em todos os casos referidos, a Administração Pública atribui efeitos à manifestação de vontade do particular e ajusta a eficácia de decisões administrativas, atuais ou futuras, ou o desenvolvimento do processo administrativo em causa de forma flexível. Algo radicalmente distinto do modo de proceder da administração pública unilateral ou monológica tradicional. Essa mudança de paradigma, possui normatividade densa o suficiente para assegurar a ampliação do uso de negócios processuais no âmbito da Administração Pública brasileira?
Negócios processuais no processo civil
No processo civil, o desenvolvimento dos negócios processuais foi evidente nos últimos anos.
A partir do CPC de 2015, houve uma ampliação das hipóteses de negócios processuais típicos, nomeadamente — seguindo as lições de Fredie Didier — a eleição negocial do foro (artigo 63); o negócio tácito de que a causa tramite em juízo relativamente incompetente (artigo 65); escolha consensual de mediador, conciliador ou câmara privada de mediação ou conciliação (artigo 168); o calendário processual (artigo 191, CPC); a renúncia ao prazo (artigo 225); o acordo para a suspensão do processo (artigo 313, II); a renúncia tácita à convenção de arbitragem (artigo 337, §6º); o adiamento negociado da audiência (artigo 362, I, CPC); o saneamento consensual (artigo 357, §2º); a convenção sobre ônus da prova (artigo 373, §§3º e 4º); a escolha consensual do perito (artigo 471); desistência da execução ou de medida executiva (artigo 775); a desistência do recurso (artigo 998); a renúncia ao recurso (artigo 999); a aceitação da decisão (artigo 1.000) etc. [2]
Porém, foi sobretudo a partir da previsão de cláusula geral da admissibilidade de negócios processuais atípicos (artigo 190 do CPC), que a doutrina efetivamente despertou para as potencialidades dos negócios processuais. Com a consagração do artigo 190 do CPC, em princípio aplicável ao processo administrativo (ex vi do artigo 15, do CPC), a experimentação procedimental e a identificação das formas de pactuação de negócios processuais prescinde de enunciação legal específica, ampliando a adaptabilidade do instituto.
Prescreve o artigo 190 do CPC:
“Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.
Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.”
A norma é abrangente e estipula limites de emprego e requisitos materiais, porém não restrições procedimentais ou temporais para a admissibilidade de convenções ou negócios processuais. A recusa do juiz é considerada excepcional, porém os negócios processuais não podem limitar direitos de terceiros, fragilizar a situação da parte vulnerável ou criar para as partes direitos processuais inexistentes, que afetem poderes e deveres do juiz ou limitem a publicidade do processo. [3]
Enfatiza Pedro Henrique Nogueira, que a exigência de serem os negócios processuais relativos a “direitos que admitam autocomposição”, exige cautela hermenêutica, pois “não se devem confundir os direitos patrimoniais disponíveis, opção conceitual da Lei 9307/96, artigo 1º, para o uso da arbitragem, com os direitos que admitam autocomposição, noção mais abrangente, pois mesmo os direitos indisponíveis podem ser objeto de negociação, e frequentemente o são, quanto ao modo de cumprimento, tal como se passa nos compromissos de ajustamento de conduta”. [4]
Em sintonia, refuta Egon Bockmann Moreira as críticas dos que consideram a negociação processual proibida quando incidente sobre ônus, direitos, poderes, bens e serviços extra commercium, ainda que objeto de contratos administrativos. Em tom interrogativo, afirma: “Ora, a tese prova demais: se são bens e serviços extra commercium, como podem ser objeto de contratos? Se são indisponíveis, como se pautar pela combinação do edital com a proposta vencedora? Se possuem essa natureza, como podem ser negados aos servidores públicos — ou ter seu adimplemento parcelado? A bem da verdade, está-se diante de comercialidade diferenciada, pautada pelo direito administrativo econômico e pela disponibilidade dos direitos postos em conflito (o que reforça a viabilidade de sua autocomposição — e da negociação processual em processos administrativos e na jurisdição cível). Uma coisa é a indisponibilidade da função administrativa; outra, completamente diversa, é a disponibilidade condicionada do próprio contrato (e da quantificação monetária do seu objeto).” [5]
O artigo 26 da Lindb
Ao lado de diversas previsões sobre a consensualidade no direito administrativo, algumas de caráter geral e orgânico (como a competência do Advogado-Geral da União para “desistir, transigir, acordar e firmar compromisso nas ações de interesse da União — artigo 4º, VI, da Lei Complementar 73/1993), um expressivo conjunto de normas especiais foi sendo aprovado para autorizar acordos processuais e convenções perante agências reguladoras, a CVM e o Cade. Juliana Palma denomina essa situação de “modelo de previsão normativa difusa” da atuação administrativa consensual [6]. Não é o caso de novamente enumerar diplomas.
O casuísmo desses enunciados deixava a descoberto entidades relevantes (ex. Ancine, Anvisa e ANA). Alguns autores, com destaque para Fernando Dias Menezes de Almeida, sugeriram que a autorização para celebração de acordos administrativo não estava prejudicada pela lacuna legal na disciplina da atividade negocial nessas entidades, derivando a possibilidade de decidir por acordos administrativos da própria competência para decidir de modo unilateral. Segundo o autor, “está implícita no poder de decidir unilateralmente e de ofício, a opção da Administração por impor a si própria certos condicionantes de sua ação, importando obrigação para com o destinatário da decisão. É lícito que se chegue a essa opção por via consensual de formação da convicção”[7]. A possibilidade de acordos decorreria de simples autovinculação.[8]
Diante desse…
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